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MUDE-SE


Fragmento do meu texto de TCC, possuindo apenas a parte individual.



MUDE-ME


Por vezes pego-me pensando, em luto, na possibilidade de permanência. Na vida, e, principalmente, em meu corpo, sinto-me mudando a todo tempo e tenho medo, medo de que em segundos não saberei mais quem sou, quem serei. Penso em como gostaria de ter certeza do dia de amanhã tanto quanto tenho do dia de ontem e questiono-me se essa insanidade absurda em torno da volatilidade humana é apenas minha, insignificante, ou um pensamento coletivo. Como dito pela pesquisadora Mary O’Neill em sua tese de doutorado “O efêmero não seria notável ou digno de atenção se não fosse pela enorme importância que atribuímos à permanência” (O’Neill, 2007, p. 92). A volatilidade torna-se um assunto de importância no momento que atribuímos valor à durabilidade, fazendo com que, ao perdê-la para o efêmero, sintamos luto pela permanência. Teria você, leitor, já se questionado sobre a volatilidade da sua existência? Será que é realmente possível um corpo estático e estável, ou estamos, para sempre, fadados à mudança? Nunca seremos capazes de beber a mesma água de um rio duas vezes, quiçá ver a mesma pessoa no espelho. Nos descobrimos todos os dias, nos tornamos alguém novo a cada sono e, em uma metamorfose constante, descamamos nossas almas a cada interação. 


“Ao acordar, certa manhã, de sonhos inquietos, Gregor Samsa se deu conta que havia se metamorfoseado num gigantesco inseto” (Kafka, 2021, p. 9). Na novela A Metamorfose, de Franz Kafka, nos é apresentado o protagonista Gregor Samsa, um homem comum, de vida pacata. Vida a qual todos seus dias se repetiam, acordando cedo para ir trabalhar, voltando tarde para descansar, repetindo o ciclo todos os dias. Vida a qual, sem mais nem menos, se transforma, quando o corpo de Gregor assume o formato de uma barata da noite para o dia. Gregor nunca havia feito nada de errado para receber tal punição do mundo e de seu corpo, mesmo assim é condenado: sofre em seu estado asqueroso durante dias, sem conseguir se alimentar ou se comunicar. Ao final, Gregor morre, sozinho e sem ser capaz de aceitar ou absorver essa mudança. Uma mudança brusca e brutal, sem explicação lógica nem piedade. Apenas uma metamorfose. Metamorfose como qualquer outra.


Posso dizer que, aceitando a ideia de que estamos, afinal, fadados a sempre mudar, estamos em uma constante metamorfose, mudando dia após dia e segundo após segundo. Seres humanos, metaforicamente, passam pela experiência de metamorfose a cada piscar, cada nova informação que absorvemos, cada toque, cada cheiro, cada imagem e cada vivência nos molda continuamente. “O que me aconteceu?” (Kafka, 2021, p. 9), é uma pergunta que fazemos ao espelho uma hora ou outra na vida. Nosso corpo é um ser volátil. 


Você, caro leitor, pode estar se perguntando onde quero chegar com isso, se eu tenho algum ponto que desejo chegar. Diante dessa dúvida, gostaria de introduzir a realidade: teria algo no mundo um ponto ou seria tudo, absolutamente e caoticamente, apenas um emaranhado de afirmações? Albert Camus afirmava que não dá para saber se há realmente algum sentido no mundo (e até na vida), que nós, humanos, compreendemos o mundo no limite de nossa humanidade, “Eu só posso compreender em termos humanos. O que eu toco, o que me resiste, eis o que compreendo.” (Camus, 2019, p. 65). Talvez meu ponto nasça em meio ao texto, talvez ele nunca exista. Que meus escritos se transformem em meio às teclas e binários e que o seu significado se faça plausível em sua interpretação e na medida em que meu trabalho te tocar.


Em O Mito de Sísifo, de Albert Camus, o ser, ou, como aqui tratado, o corpo, é um dos fatores para que o absurdo exista. “O absurdo depende tanto do homem quanto do mundo. Por ora, é o único laço entre os dois. Ele os aderem um ao outro como só o ódio pode juntar os seres.” (Camus, 2024, p. 36). Sem um dos fatores, ser, consciência ou mundo, o ciclo de seu relacionamento fica incompleto, já que o ser busca conexão com um mundo que o ignora, a consciência dessa unilateralidade gera conflito entre o ser e o mundo, e, finalmente, o absurdo nasce. Retomo o ponto introdutório, o absurdo nunca foi ação, mas sim reação, ele é mero fruto da relação entre entidades que nunca foram capazes de coexistir em harmonia. Entidades que conflitam e brigam entre si sem a possibilidade de separação, um relacionamento infinitamente tóxico.  


O mundo, ou cosmos, obtém total poder sobre os outros de maneira tirana, fazendo o que bem entende com o ser e sua consciência. "O mundo o tritura" (Camus, 2024, p. 103). O mundo é indiferente, ele toca, quebra, rasga, mata, afoga, parte, monta, desmonta, seca, abusa, cuida, molda e torce o ser até seu ponto de quebra. Onde o ser procura revidar mas dá de cara com uma parede. Como seria possível revidar contra algo tão poderoso e gigantesco? Como seria um mero humano, um fragmento de poeira, capaz de se impor em frente a um ser ancestral, mais antigo que o conceito de tempo? 


Ele se revolta


E, em consequência absurda, muda. 


Em uma realidade de conflito constante o ser, ou, como aqui tratado, o corpo, revolta-se mudando em igual escala. O mundo, incompreensível, frio, incoerente, não mudará seus meios ou ações, e muito menos nós poeira cósmica somos incapazes de sequer entendê-lo, quem dirá realmente mudá-lo: podemos influenciar em outros corpos habitantes, mas não temos poder, essencialmente, sobre o mundo ou cosmos. 


A repetição diária de nossas rotinas, nosso inicial método de escape da inutilidade do mundo, agrava nossos questionamentos, e, com isso, agrava o sentimento amargo do absurdo daqueles que possuem consciência do mesmo. Assim como em A metamorfose, nossas vidas estão tomadas pelo cotidiano e pelo, percebido como, sobrenatural. Permeamos o mundo em um ato cíclico de sacrifício de nossa própria sanidade, tentando ativamente ignorar a realidade, ou realidades, do mundo em volta: aqueles os quais ganham consciência em meio a esta vida repetitiva tremem perante a ideia de que nada que fazemos possui real influência em como o mundo funciona. Como um ouroboros patético, fogem e voltam a confrontar a real falta de lógica de nosso cosmos e como, na verdade, somos pequenos demais e inúteis de nascença que permanecem vivos apenas por hábito. Argumento que, em algum momento, você, leitor, deve ter se sentido como Sísifo, repetindo a mesma tarefa diária incontáveis vezes, seja no trabalho, relacionamento amoroso ou em alguma outra face de sua vida. Ou que, por outro lado, tenha acordado um dia, sentindo-se estranho, como Gregor Samsa, questionando seu corpo em mudança e sentido medo dele, por sua aparência diferente por conta da puberdade, cansaço estampado em seu rosto por estresse ou pela fraqueza em seus ossos e o frio na espinha de perceber que você envelheceu. 


Não nos ajuda, também, que, além dessa relação de gato-e-rato com nossa própria consciência, que, do outro lado, somos encarados por um mundo, massivo, que não tarda a ignorar-nos. De certo modo, nossa relação com a consciência pode ser, até mesmo, positiva, desde que a mesma nos permita aceitar a realidade. Agora, seria nossa relação com o mundo positiva em alguma esfera também? O ser é, essencialmente, alheio a si e ao cosmos.  


Este mundo não é razoável em si mesmo, eis tudo o que se pode dizer. Porém o mais absurdo é o confronto entre o irracional e o desejo desvairado de clareza cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. (Camus, 2024, p. 36). 


Diante dessa ligação, fica escancarado o desbalanceamento de poder entre os fatores: de um lado temos o ser, uma pessoa muito provavelmente presa em sua rotina, que questiona a si e a seu meio, alguém que não possui influência na grande escala do mundo, mas possui grande apetite por clareza. Por outro lado temos o mundo, um cosmos infinito, um ser ancestral e contraditório, que usa e abusa do ser de maneira apática, não importa para ele o que acontece ou deixa de acontecer com o ser.


Mas, se nada realmente importa, deveria eu matar-me logo e livrar-me desse peso?  


Argumento, com base em O Mito de Sísifo, de Camus, que, ao deparar-se com o vazio do mundo, tenta ativamente deixar de existir. O desejo de morrer parte apenas do medo do desconhecido.


Luto é, com certeza, um sentimento presente em todo esse trajeto. O luto não se limita a morte de entes queridos mas se alastra pela perda de objetos, características, tempo. “O luto pode ser o resultado de uma perda que não envolve morte, mas pode ser o resultado da perda de um ideal, de uma crença, até mesmo de uma fantasia” (O’Neill, 2007, p. 129). O luto pode ser ela perda de si. Pela mudança de si. Luto pela permanência. 


Lutamos contra a mudança e vivamos o luto pelo nosso eu anterior.


Que esse luto venha a manifestar-se como apenas uma mudança em prol de outra. Que a perda da estabilidade vire apenas uma parte absurda de nossas vidas. Que aceitemos a dor de mudar, a dor de crescer, a dor de torcer, a dor de machucar e que essa dor torne-se carvão para a revolta contra o conformismo. Que lutemos contra a opressão do cosmos gritando “mude-me novamente e eu hai de mudar-te em mim”. Que o luto torne-se aceitação. Que o luto torne-se mudança e não o contrário. Que dela possamos rebelar-nos absurdamente.


Conforme sofremos esse abuso absurdo do cosmos nossos corpos e mentes se moldam em conflito, mudamos nosso modo de enxergar, mudamos nossa postura, nossa rotina. Achamos tempo para encaixar um pouco de angústia existencial e desejo por revolução. Nos revoltamos absurdamente ao tratar o mundo sem dar-lhe o gosto de nosso desespero, mas sim, nos conformando em rebeldia, aceitando que sejamos moldados enquanto reclamamos a posse de nossos corpos e mentes. Afinal, mudamos de segundo em segundo de qualquer forma, seria tolice tentar lutar contra esse fato. Gregor Samsa nunca teria conseguido deixar de ser uma barata, então, não teria sido para ele, talvez, um fim melhor aceitar seu estado grotesco e apenas deixar sua vida antiga para trás? 

Talvez devêssemos imaginá-lo feliz assim. 


Talvez, só talvez, em algum outro cosmos, o mesmo tivesse desejado essa mudança, talvez ele tenha aceitado-a melhor. Concorda que esse fim teria sido muito mais leve para si, do que tentar lutar contra o que lhe ocorreu? De certa forma, Gregor Samsa, Sísifo, eu e você, todos temos isso em comum: algo que nos ocorreu, que nos mudou em nossa essência e que passamos, ou perdemos, horas, dias, anos, lutando contra a mudança, lutando contra a realidade. Não estou dizendo que devemos aceitar tudo que é nos dado, mas sim, concordar em sanidade que existem coisas que não conseguiremos nunca desfazer. Então, peço que recolha em sua mente, toque seu cérebro e imagine-se em paz com a irracionalidade de seu meio, e que, assim, mude-se e siga em frente. 


Mude-me. 


A volatilidade de um ser-corpo diante de um mundo invasivo, irracional. O mundo molda nossos corpos, nossas almas, nosso ser, diariamente a cada segundo de frieza e nos desesperamos pela falta de sentido, pela falta de conexão. O mundo nos molda, nos abusa, nos usa, nos quebra. Deveríamos desistir de tudo ou seguir em rebeldia, gritando aos ventos desafiando o cosmos para que nos mude novamente, para que, em resistência, aceitemos. Peço que mude-me novamente, peço que use meu corpo como sua tela e faça de mim sua mais nova obra, para que em teimosia eu tome o que fizeste de mim meu, que eu reclame posse do que me foi feito, que sua obra torne-se eu novamente, e eu possa criar significado desse absurdo incessante. Que a volatilidade de meu corpo seja um lembrete sobre a “fragilidade da existência” (O’Neill, 2007, p. 90). Que meu corpo torne-se arte e o mesmo sirva como um lembrete alegre do fim. Memento mori. Que eu seja feliz com meu corpo moldável assim como Sísifo e sua pedra ou, em um universo paralelo, Gregor Samsa em seu corpo de barata. 


Peço que mude-me


E que assim seja até o fim da eternidade. 


MUDE-SE


Mude-se nasce da mudança absurda, e da aceitação da mesma. Como Gregor Samsa, um dia ela pode deixar de ter sua forma humana inicial e tornar-se algo monstruosamente diferente. Trago a revolta contra a permanência e almejo por um trabalho conjunto, uma obra que move-se como eu, como você. Entre eu e o acaso. Obra que muda. Corpo volátil.

Meu processo até chegar nessa ideia de obra foi uma série de metamorfoses, pensei em materiais, dimensões e poéticas diversas até chegar no meu real corpo de trabalho desejado. Migrei de telas, para tecido, para argila, até, finalmente, chegar no arame e migrar novamente. Pensei em pedras, tijolos, terra. Arame. Ferrugem. Passei por inúmeras tentativas e erros, planejamentos sem continuação, esboços sem sentido. Textos. Escrevi tanto durante a idealização de minha obra que as palavras começaram a sangrar entre si, virando emaranhados gráficos de baboseiras as quais eu gritava para o papel. Deixei muitas ideias para trás na busca da obra ideal para o que idealizei, engavetei muitos processos e joguei muitos outros no lixo. Foi um processo tortuoso, cansativo. Um processo como qualquer outro.


Estudei as vísceras da efemeridade, da mudança. O efêmero como rebeldia, como revolta. Revolta contra a necessidade por permanência, por estagnação. A efemeridade nos lembra da morte e da vida, dos ciclos constantes de tudo. “A arte efêmera é um lembrete da fragilidade da existência” (O’Neill, 2007, p. 90). Almejo pela reflexão sobre a existência, sobre nosso fim iminente e sua aceitação. O fim não precisa ser algo ruim, nem a mudança.


Queria desde o início trazer o corpo humano, e, especificamente, o feminino. Trato um corpo que me é conhecido, um corpo o qual habito e que, antes desse, algum dia já habitei também. Trato de um corpo em formação, em constante mudança. Literal e metafórica. 


Como metáfora dessa mudança trago aparência de uma base humana mesh, ou seja, uma base para escultura digital em formato de corpo humano, com polígonos simplificados e demarcados como uma tela quadriculada (“mesh”). Utilizo uma tela aramada pintada de preto para simular sua aparência. Apenas uma base, um esboço, não um produto final. 


Tendo uma estética inicial e materialidade definida fui atrás de artistas que conversassem com minhas ideias para referenciar. Escavei a internet em busca de obras que me movessem, porém não obtive sucesso por meses. Sabia de início que utilizaria como inspiração a obra Poesia de Asfalto (2019), de Natasha de Albuquerque, pelo eventual desgaste e desaparecimento da obra: a obra consiste na pintura da palavra “absurdo” no asfalto de uma rua do Distrito Federal. Fiquei encantada com a ideia de que a obra virá a sumir completamente algum dia. Desejava fazer uma obra em formato humano, obra a qual o tempo viesse a moldá-la conforme seu desejo por conta da ferrugem. Tornando a obra original efêmera e inconstante.


Após muita pesquisa encontrei, por acaso absurdo, a série Feeling Material, do artista Antony Gormley. Ao ver suas esculturas senti uma euforia a qual não sentia a meses: finalmente havia encontrado o que eu estava buscando. Suas esculturas, de formato bagunçadamente humano, possuem em si uma aura caótica inexplicável em palavras. A série tenta descrever como o corpo ocupa o espaço (Gormley, s.d.), utilizando a visualidade caótica de anéis de arames entrelaçados, como um corpo em volátil movimento. Como um corpo em constante mudança. Utilizei sua série como referência artística, principalmente pelo material utilizado. De certa forma seu conceito conversa com o meu, a relação corpo-mundo, porém sem o detalhe principal em meu trabalho: a volatilidade.


Mudança. Volatilidade. Fim iminente. Morte. 


Monumento Mínimo, de Néle Azevedo, traz uma ideia semelhante a minha: o material, gelo, é completamente diferente do arame utilizado em meu trabalho, Azevedo descreve “É composto por centenas de esculturas de gelo que são levadas a locais centrais das cidades e, com a ajuda dos transeuntes, são deixadas para derreter” (Azevedo, 2013, p.1). A volatilidade e o meio, porém, são traços comuns em ambas. Busco uma obra perecível, uma obra que virá a desaparecer sem salvação alguma. Assim como o gelo de Azevedo, o arame em meu trabalho está destinado a desaparecer, a ser consumido pela ferrugem e moldar-se até desaparecer. Falo, porém, de um corpo literal, um corpo quanto ser, um corpo de mulher, diferente de Azevedo que trata de monumentos na cidade, não corpos vivos.


O arame em minha obra traz um corpo, não só o molda. Ele é o corpo. Ele é o ser. Ele é suas veias e nervos, sua pele e órgãos. Seus ossos. O arame toma forma de um corpo humano corrompido, ou moldado, pela ação do oxigênio, ou mundo. O mundo corrói o ser como a ferrugem molda o corpo. 


Meus esboços se transformaram com a descoberta de suas obras. Por dias minha escultura materializava-se em meus sonhos, os arames envolviam-se em tecidos e moldavam-se diante dos meus olhos. Acordava inquieta de meus sonhos, com meu caderno de esboços embaixo de meu travesseiro, e esboçava tudo o que eu podia lembrar. Texturas, sentimentos, formas. Minha obra passou por metamorfoses antes mesmo de chegar ao mundo material. O material oxidou antes mesmo de ser encontrado e moldou-se em minha alma, antes mesmo de que minhas mãos pudessem agir.


O processo tortuoso para a idealização da obra reflete, também, na sua realização. Dificuldades em achar o material perfeito para a obra permearam a maior parte de minha escrita, tive de repensar a função de uma tela de galinheiro em minha casa, destruindo parte do meu quintal. Cravei o arame em minhas mãos, braços e pernas tentando alcançar o formato desejado. Passei horas ao sol, cortando e moldando a tela.

Dissequei o arame, dei-lhe uma nova utilidade ao retirar dele toda sua função anterior, tornando-o obra. Subverti sua forma e a deixei inacabada, uma pessoa inacabada, um corpo inacabado, um corpo em metamorfose. Tentei e falhei diversas vezes até chegar na obra final, a qual passou horas, dias, na chuva e em soluções de vinagre e água sanitária, para que a ferrugem se alastrasse mais. Assombrei minha mãe com este corpo perambulando pela casa, o qual parece, de certa forma, um vulto.


Morei com esse corpo, acordei e dormi por dias com ele. Conversei com esse corpo, abracei-o e cuidei dele. Senti sua história reverberar pela minha mente e, por ela, me pus a escrever. Absurdo, sim, mas nada menos verdadeiro. A obra me moldou tanto quanto meus dedos a moldaram. Não poderia dormir enquanto não acabasse minha parte, não conseguiria comer até vê-la em pé, não poderia respirar até senti-la conversar comigo. Senti a ferrugem tomar conta de minha alma antes mesmo de alastrar-se pela obra.


Falo de um corpo feminino, um corpo meu. Um corpo que já habitei. Falo de um corpo feminino já visto, experienciado ou sentido por qualquer um. Falo do seu corpo. Do corpo de sua mãe. Do corpo de suas amigas. Do corpo de sua esposa. Do corpo de sua amante. Falo de um corpo feminino. Um corpo feminino por conhecê-lo tão bem, por tê-lo habitado por meses e depois formado o meu próprio. Um corpo sem braços, sem capacidade de agir. Um corpo vulnerável às ações do mundo. Um corpo sem pé nem cabeça, sem sentido, sem certezas. Um corpo inacabado. Um corpo em constante mudança. Um corpo feminino.


Mude-se é inteira feita de arame telado, com seções de arame enferrujado ao meio, como se o mundo estivesse a moldá-las. A proposta da obra é que o mundo possa interferir na obra, moldando seus membros e criando um novo corpo a cada ação da ferrugem.


A obra teme e deseja a mudança assim como uma tela em branco almeja pelo seu artista.


Então para ti rogo minhas preces.


Mude-me.


E por fim,


Mude-se.




REFERÊNCIAS


ALBUQUERQUE, Natasha de. Almoço sem relva, 2012. Fotoperformance. Brasília.


______. Pilastra. Poéticas do Absurdo. Brasília, 2019. Disponível em: < https://www.yumpu.com/pt/document/read/65127731/poeticas-do-absurdo-catalogo/>. Acesso em: 20/08/2024.


______. Poéticas do Absurdo. Catálogo de exposição, Galeria A Pilastra de Distrito Federal, 31 out. - 31 dez. 2019. Brasília: A Pilastra, 2019. Disponível em: https://www.yumpu.com/pt/document/read/65127731/poeticas-do-absurdo-catalogo Acesso em: 27 ago. 2024. 


AXIOTIS, Angel. Free Base Mesh. Sketchfab. [S.l.], 16 jan. 2017. Disponível em: https://sketchfab.com/3d-models/free-base-mesh-e4049b5274904bf5ab91001b2bc25eae. Acesso em: 02 out. 2024.


AZEVEDO, Néle. Minimum MonumentJournal of Performance Research. v. 18, 6. ed., p. 16-17, maio 2014. TAYLOR&FRANCIS. Minimum Moment. DOI: https://doi.org/10.1080/13528165.2013.912802. Acesso em: 27 set. 2024.


CAMUS, Albert. O mito de Sisífo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. 32.ed. Rio de janeiro: Record. 2024.


GORMLEY, Antony. Feeling Material IV. 2003. Aros de aço macio laminados de seção quadrada de 4,76 mm, vários diâmetros, 208 × 162 × 150 cm.


______. Feeling Material Works. 2024. Disponível em <https://www.antonygormley.com/works/sculpture/series/feeling-material#p39/>. Acesso em: 10/09/2024.


KAFKA, Franz. A Metamorfose. Tradução de Fabio Kataoka. Barueri, SP: Camelot, 2021.


O’NEILL, Mary. Ephemeral Art: Mourning and Loss. 2007. 168 f. Tese de doutorado (Doutorado em Filosofia) - Loughborough University, Loughborough, 2007.


 
 
 

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